16 de mar. de 2006

Entre a Daslu e o Opus Dei

Entre a Daslu e o Opus Dei
Marco Aurélio Weissheimer, da Agência Carta Maior

Os caminhos adotados por lideranças do PSDB parecem flertar
perigosamente com um fundamentalismo de direita exótico que vai da
Daslu a Opus Dei, misturando vestidos da Gucci de 11 mil reais,
instrumentos para chicotear as nádegas e rampas anti-mendigo.

Uma pequena nota intitulada "Cruz-credo", publicada no "Painel" da
Folha de São Paulo (17/01/2006), coloca gasolina na fogueira que
começa a arder no ninho tucano. "Tucanos viram com apreensão a
ligação de Alckmin à prelazia católica ultra-conservadora Opus Dei,
feita por revista semanal. Acham que, com sinal trocado, pode causas
estragos como a fuga de FHC à questão sobre seu ateísmo em debate de
85", diz a nota. A revista em questão é a Época que em sua edição
desta semana traz uma matéria de capa sobre "os segredos da
organização mais poderosa e influente dentro da Igreja Católica", o
Opus Dei. A matéria de doze páginas conta, entre outras coisas, que o
governador paulista é um dos políticos brasileiros com ligações mais
estreitas com a organização. Os tucanos ligados a Alckmin desconfiam
da autoria da nota, vendo nela as digitais do prefeito de São Paulo,
José Serra. Mas, para além da guerra surda que ameaça se alastrar no
PSDB, a nota da Folha e a reportagem de Época ajudam a mostrar
algumas facetas obscuras do jeito tucano de ser e de agir.

E essas facetas são reveladoras do modo de pensar e agir dos dois
principais postulantes tucanos à candidatura presidencial. O
governador Geraldo Alckmin, maldosamente apelidado por seus
adversários de "picolé de chuchu", oscila entre o elogio do mundo do
consumo, dos negócios e das celebridades e pretensões místicas que
encontram no Opus Dei um terreno fértil. Vejamos, em primeiro lugar,
o terreno mundano. Em junho de 2005, Alckmin desfez o laço da fita de
inauguração da Daslu, apontada então como o maior "templo do consumo"
do país. Em uma crônica memorável, Mônica Bérgamo, da Folha de São
Paulo, descreveu assim o entusiasmo do governador paulista com a nova
loja: "E soam os violinos da Daslu Orchestra, formada por 50 músicos.
São 12 horas de sábado. Alckmin, que chegou ao prédio de helicóptero,
desfaz a fita. A Daslu é o traço de união entre o bom gosto e muitas
oportunidades de trabalho, diz. Só para a família de Alckmin são
duas: trabalham lá a filha e a cunhada dele, Vera". Apenas alguns
meses depois da inauguração, o bom gosto e as oportunidades de
trabalho acabaram atingidos por denúncias de contrabando e sonegação.

Anti-comunismo e condenação da modernidade
No terreno espiritual, a reportagem de Época, trouxe detalhes sobre o
envolvimento de Alckmin com o Opus Dei, criado em 1928 pelo espanhol
Josemaría Escrivá de Balaguer, canonizado pelo papa João Paulo II em
2002. A canonização deu-se em tempo recorde para os padrões da
igreja, apenas 27 anos depois de sua morte. Foi um reconhecimento
pelos serviços prestados pela ordem ao papado de João Paulo II,
particularmente em sua cruzada contra o regime comunista na Polônia
e, de um modo mais amplo, contra religiosos e teólogos progressistas
ligados à Teologia da Libertação. Segundo o teólogo Juan José Tamayo-
Acosta, autor de "Fundamentalismos y Diálogo Entre Religiones",
durante seus quase 27 anos de pontificado, João Paulo II pôs em
prática a concepção de Igreja própria do Opus Dei: cruzada
anticomunista lançada no pontificado de Paulo 6°; condenação da
modernidade, na linha de Pio 9° e Pio 10°, por considerá-la inimiga
do cristianismo: restauração da cristandade por meio de uma "nova
evangelização".

Segundo a matéria assinada pelos jornalistas Eliane Brum e Ricardo
Mendonça, nos últimos anos Alckmin vem recebendo formação cristã do
Opus Dei em encontros noturnos no Palácio dos Bandeirantes. "Elegeu
Caminho, o guia escrito pelo fundador Josemaría Escrivá, como seu
livro de cabeceira. `Acostuma-te a dizer que não' é um dos
ensinamentos que mais aprecia, conforme contou em entrevista à
imprensa", relatam os jornalistas. Um dos professores do governador
seria o jornalista Carlos Alberto Di Franco, importante numerário da
ordem. Os numerários são membros celibatários que vivem em centros do
Opus Dei e cumprem um rígido programa diário de rezas e rituais. Além
de dar "formação cristã" a Alckmin, Di Franco é representante no
Brasil da Escola de Comunicação da Universidade de Navarra (Espanha)
e diretor do Master em Jornalismo, um programa de "capacitação de
editores" que já formou mais de 200 cargos de chefia dos principais
jornais do país. Ele é um dos executores da política do Opus Dei para
a mídia no Brasil e na América Latina.

As palestras do Morumbi
Os encontros com Alckmin no Palácio Bandeirantes receberam o nome
de "Palestra do Morumbi" e reúnem um pequeno grupo de empresários e
profissionais do Direito. Ainda segundo a matéria de Época, entre
outros participam dessas conversas João Guilherme Ometo, vice-
presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo
(Fiesp), Benjamin Funari Neto, ex-presidente da Associação Brasileira
da Indústria Elétrica e Eletrônica, e Márcio Ribeiro, ligado à
indústria têxtil. Segundo Di Franco, nessas reuniões são
tratados "temas relacionados a práticas ou virtudes cristãs". A
revista Época já solicitou repetidas vezes uma entrevista com Alckmin
para falar do assunto, mas até agora não obteve resposta. O silêncio
e a ausência de transparência são marcas características do trabalho
religioso e político do Opus Dei. Enquanto prelazia, uma figura
jurídica do Direito Canônico, a organização é totalmente independente
de bispos e dioceses, só obedecendo ao seu prelado, cargo que hoje é
ocupado por dom Javier Echevarría. Este, por sua vez, só presta
contas ao papa.

Não deixa de ser surpreendente que uma das principais lideranças
nacionais do PSDB e aspirante à presidência da República tome o Opus
Dei como uma referência para sua formação religiosa. Ao menos no
papel, o PSDB nasceu como um partido de centro-esquerda que pretendia
desenvolver um projeto social-democrata para o país. Mas essa
surpresa é apenas parcial. A hegemonia do neoliberalismo nas últimas
décadas teve a capacidade de transmutar programas e agendas e hoje a
lógica da mercadoria, que tem na Daslu um de seus símbolos mais
bizarros, é o verdadeiro programa do partido (aliás, da imensa
maioria dos partidos brasileiros, chegando a contaminar inclusive o
principal partido de esquerda do país, o PT). Para além das práticas
bizarras de mortificação pessoal (como o uso de instrumentos para
chicotear as nádegas nuas uma vez por semana), o silêncio, a falta de
transparência, a preocupação em influenciar a mídia e o
estabelecimento de estreitas relações com lideranças políticas e
empresariais mantém uma sintonia fina com a lógica que rege o mundo
hoje.

Não tem chicotinho da Louis Vuitton?
Outro traço comum entre o Opus Dei e essa lógica é o desprezo pela
imensa maioria dos mortais. Conforme relata a matéria de Época, para
os membros da ordem "parte significativa dos católicos não passa de
católicos de censo, que servem para expandir as estatísticas, mas
seguem apenas as crenças pessoais". No livro de cabeceira de Alckmin,
o fundador do Opus Dei manifesta total desprezo a essas pessoas: "Que
conversas! Que baixeza e que...nojo! – e tens de conviver com eles,
no escritório, na universidade, no consultório...no mundo". Cena
interessante para uma peça de realismo fantástico: Alckmin convida
seus amigos do Opus Dei para uma visita a Daslu. Param diante de uma
loja e um dos convidados pergunta: - "não tem chicotinho da Louis
Vuitton?". A frase do espanhol fundador da ordem já foi repetida
diversas vezes e com diferentes inclinações no universo Daslu, tendo
como alvo do desprezo o "populacho", todos aqueles que não estão a
altura de pisar aquele "solo sagrado".

Não consta – e seria ainda mais surpreendente – que lideranças
tucanas como José Serra e Fernando Henrique Cardoso mantenham
vínculos com o Opus Dei. Mas o silêncio, a falta de transparência, a
influência na mídia e o desprezo por aqueles que não são "iniciados"
e "bem nascidos" em seu mundo aparecem em propostas como a instalação
de rampas anti-mendigos em São Paulo ou em declarações de amizade a
Henry Kissinger. A se confirmar as digitais de Serra na exploração
das matérias que explicitam as relações de Alckmin com o Opus Dei,
saberemos, na verdade, que o prefeito de São Paulo dificilmente
poderia participar da organização ultra-conservadora. Em um texto
intitulado "O otimismo cristão", Josemaría Escrivá diz que a tarefa
do cristão é "afogar o mal em abundância de bem". Os desafetos de
Serra garantem que ele adota essa máxima, só que em sentido
contrário, produzindo abundância de mal para atingir seus objetivos.

Para finalizar, uma reflexão do historiador e crítico social Russell
Jacoby para tentar entender essa mistura exótica de social-
democracia, Daslu e Opus Dei. Em seu livro "O fim da utopia"
(Record), Jacoby escreveu: "A vitalidade do liberalismo encontra-se
em seu flanco esquerdo, que funciona como seu crítico e cobrador.
Sempre que a esquerda renuncia a um sonho, o liberalismo perde chão,
torna-se flácido, instável". E aponta uma ironia fundamental: "a
derrota do radicalismo priva o liberalismo de sua vitalidade". O que
dizer da aproximação de uma das principais lideranças políticas do
PSDB com uma organização que acredita que chicotear as nádegas nuas
uma vez por semana é uma condição para ingressar no reino de Deus? O
que dizer da enfurecida reação tucana às investigações da Polícia
Federal sobre as práticas da Daslu, para não falar dos discursos
deslumbrados durante a inauguração do templo de consumo de luxo ao
lado de uma favela? Se é verdade que o PT enredou-se em caminhos que
colocaram em risco a sobrevivência da esquerda no Brasil, os caminhos
adotados pelo PSDB flertam perigosamente com um fundamentalismo de
direita exótico que vai da Daslu a Opus Dei, misturando vestidos da
Gucci de 11 mil reais (o mais simples), instrumentos para chicotear
as nádegas e rampas anti-mendigo.

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